Carta do depois do fim do mundo
Esta carta representa uma proposta construída na 2ª edição do curso de extensão “Falando de medos, angústias e violências”, que acontece na UFRGS. Em princípio pensamos em escrever cartas uns para os outros, porém uma das participantes, a Karolline, teve a ideia de escrevermos para nós mesmos uma carta do antes da epidemia e outra do depois. A que segue escrevi para mim no depois - sabe-se lá quanto tempo depois do fim do mundo.
Escrevi, portanto, uma carta da stela do futuro para a stela durante a pandemia, como foi a tarefa que inventamos para nós mesmos. Misturo um pouco de realidade, outro tanto de afeto e uma pitada de ficção, como sempre, sem medo do peixes que habita em mim. Achei que a carta necessitava de um preâmbulo, uma explicação, senão ficaria incompreensível ou surreal, já que faço um mélange de fatos reais, desejos e invenção.
Então, aí vai a carta.
E daí? taí? stela, você, eu mesma?
Não responde... vou falar então.
Você havia dito que sentiríamos saudade de 2020. É verdade. Aquele ano em que você ficou em casa, trabalhando que nem uma máquina, alternando com períodos de mal-estar, inclusive em nível do orgânico, com dores de garganta que culminaram com a perda da voz. Veja só, a voz, você que ama falar. Ainda bem que tinha aquela velha bike enferrujada que a Si comprou em um ferro velho...
No isolamento você cozinhou, lavou, faxinou, fez ginástica, leu, pintou, dançou, ouviu música, viu filmes e shows, pensou, sonhou, trabalhou: foram quatro defesas de mestrado, a coordenação do pós novo, o livro da tese do Roger, capítulos de livros, artigos, o antimanual, duas disciplinas da pós, quatro da graduação, lives, podcasts, textos leigos, esqueci alguma coisa?
Ah, você lambeu as feridas das perdas, do amor da juventude, o herói, o preso político, o homem que se tornou amigo pelo tempo, e do outro, o amante negro, aquele que mostrou que o amor não tem idade. Partiram. Você devia saber, quando um deus está trabalhando na ferraria da alma, vem a dor depois. A dor. E você ficou pensando que deu mais do que recebeu, mas não faz mal, é bíblico, você mesma havia dito. Ganhou a potência de saber mais sobre si (sempre aprendemos sobre nós mesmos quando nos apaixonamos), liberou simbolicamente cada um e cada qual para seguir sua vida e, incrível, no isolamento da epidemia! brotou novamente feito mato, feito rizoma, feito flor, a alegria de viver...
Sim, lembrei de você, de suas previsões catastróficas e elucubrações frente à morte, sobretudo quando as cidades ficaram infestadas por milícias e gangues ameaçando, roubando e matando por dá cá aquela palha. Lembrei de suas previsões estatísticas, furadas você dizia às vezes, com aquele pendor dos gringos para se achincalhar, isso quando chegamos a um milhão de mortos, tão rápido! e a gente quase não percebeu graças às mentiras, às fake news e pela dimensão do país as mortes ficaram diluídas no território, esquecidas pelos que se apressaram a puxar o saco, trocar favores, ganhar uns trocos, negar, distorcer e esconder os dados.
Lamentamos 2020 quando se abateu a fome sobre nós, já no início do processo de hiperinflação, quando o dinheiro virou palha, após as grandes secas causadas pela queima da Amazônia e pelo desmatamento, após a falta de água que fez reemergir doenças de veiculação hídrica, já eliminadas. A produção de grãos escasseou abruptamente, acompanhada pela diminuição de proteína disponível devido às pragas nas grandes fazendas de criação de animais para abate.
E então, aconteceu o absurdo, após terem sido caçados os cães e gatos para consumo da carne, quando até mesmo os ratos foram comidos, muitos começaram a se alimentar de proteína humana. Estimativas conservadoras consideram que houve outro milhão de mortes por inanição, lembrando o holocausto colonial¹, uma epidemia de mortes pela fome produzida no fim do século XIX, atribuída ao regime de monções, mas causada pelos arranjos coloniais e imperialistas.
Quando a epidemia já estava debelada e a produção de alimentos sintéticos se tornou vigente, ultrapassada a grande fome, dados não oficiais estimaram um bilhão de óbitos em escala mundial. Mesmo assim, a humanidade não chegou a outro gargalo biológico como havia sido aventado.
Mas depois da morte, depois do horror, depois do depois, houve algo incrível, preciso contar, você vai gostar. Começou com a mineração de asteroides, pelos anos 2000 que, certamente, você já sabia. As atividades de extrativismo nos asteroides se ampliaram rapidamente para outros planetas e se percebeu que, na realidade, havia uma atmosfera rarefeita no satélite próximo permitindo a respiração de humanos saudáveis, mesmo com alguma complementação de oxigênio. Começou então a ocupação da Lua.
Nesse momento houve uma decisão da Liga de Nações de acatar o pedido de um grupo de revoltosos anarquistas para viver no satélite irmão. Partiram, então, várias naves que levaram os dissidentes ao exílio voluntário e à criação de um novo mundo. Iam felizes, mesmo frente à tarefa sobre-humana de tornar habitável o planeta inóspito. Levavam, para o mundo novo, mudas e sementes para iniciar a agricultura, para semear plantas, para semear o futuro.
Essa empreitada de visionários pensada pela Le Guin não deixaria a gente sentir saudades de 2020. Ursula le Guin, a mulher que inventou uma revolução socialista planetária, na saga de um conselho de mundos, o Ekumen , descrita no livro Os despossuídos². Um mundo em que os governantes de um planeta similar à Terra, Urras, oferecem para um grupo de insurretos anarquistas a possibilidade de viverem no planeta satélite, a lua deles, Anarres.
Você, certamente, haveria de querer estar com eles! Começando tudo do zero em outro patamar. Reafirmar, reviver, refundar a proposta comunitária vislumbrada pelos revolucionários e pelas revolucionárias de tantas gerações. Portanto, gostaria, nesta breve carta, de relatar e exaltar o cabedal de experiências igualitárias que se produziram ao longo da história da humanidade. Foram muitas. Foram tantas. Cumpre não esquecê-las.
Apenas para não deixar passar, começaria citando os escravos revoltosos comandados por Espártaco³, mas não poderia deixar de falar no palestino libertário de Nazaré e da pedagogia do amor pregada pelos cristãos primitivos. No Brasil, dentre as lutas de resistência do povo negro escravizado há que lembrar Zumbi, Dandara e o quilombo de Palmares e, ainda na América, Toussaint L’Ouverture e os jacobinos negros4, Antonio Conselheiro e a saga de Canudos5, a colônia Cecília.
A Rússia de 176, a Grande Marcha da China, a coluna Prestes7, Che, Cienfuegos e Fidel8 capitaneando a revolução cubana, Ho Chi Min e o heroico povo vietnamita, os Panteras e Malcom X, os Sem Terra e os Sem Teto, Marielle, os zapatistas9 refugiados na floresta Lacandona, que você teve a sorte de conhecer: para todos, todo10. Peço perdão aos tantos outros que não lembrei, os sem nome e os sem história, os que ficaram esquecidos e os que se foram na luta. Mas os sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade retornam e embalam cada ciclo histórico.
Para terminar a conversa, quero trazer a parábola lembrada por Maria Cecília Minayo11, na delicadeza do encontro virtual realizado em dezembro de 2020. Disse ela: não há como eliminar o mal representado pelo joio que cresce junto ao trigo. Se você corta um, corta o outro também. Dessa maneira, o bem e o mal seguem juntos e precisamos aprender a conviver e a lidar com ambos. Precisamos.
Para me despedir quero desejar que o mistério do cosmos acalente você e os seus. E que, possamos reverenciar e cuidar da terra mãe, porque ao contrário dos anarquistas de Anarres, na nossa história a nave é uma só.
stela, depois do fim do mundo.
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Why everyone should read the dispossessed? |
Referências
1. Davis, Mike. Holocaustos coloniais. Clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. São Paulo: Ed. Record; 2002.
2 .Le Guin, Ursula. Os despossuídos. São Paulo: Ed. Aleph; 2017.
3. Fast, Howard. Espártaco. São Paulo: Abril Cultural; 1981.
4. James, C.R.L. Os jacobinos negros. Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Rio de Janeiro: Boitempo; 2010.
5. Vargas Llosa, Mario. A guerra do fim do mundo. 8ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1982.
6. Reed, John. Os dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Círculo do livro; 1986.
7. Amado, Jorge. Vida de Luiz Carlos Prestes. O cavaleiro da esperança. Rio de Janeiro: Record; 2002.
8. Ramonet, Ignácio. Fidel Castro. Biografia a duas vozes. São Paulo: Boitempo, 2006.
9. Houtart, François. Os zapatistas ainda existem. Argumentum, Vitória (ES), v. 5, n.1, p. 7-31; 2013.
10. Meneghel, Stela N. Psicologia social da Libertação. São Leopoldo: Instituto Humanitas. UNISINOS. 10.[entrevista]. Dez, 8, 2008. disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/18650-psicologia-social-da-libertacao-entrevista-especial-com-stela-meneghel
11.Minayo, Maria Cecilia de Souza. Porto Alegre: UFRGS. [palestra] Dez, 11, 2020. disponível em:https://youtu.be/E9Il13D6dKQ
12.Salvatierra, Valentina. Why everyone should read the dispossessed? Jun 21, 2018. https://medium.com/@ValeSalvatierra/why-everyone-should-read-the-dispossessed-eee7a55941cf