Pele de Foca, Pele da Alma. Uma história do folclore Esquimó, do povo Inuít. O conto fala da história de um homem solitário, que um dia perto das rochas onde pescava, ouviu um grupo de mulheres foca dançando. Ele ficou tão encantado com aquilo, que acabou roubando uma das peles de foca de uma das mulheres. Este conto têm várias interpretações e mensagens para que possamos refletir e entender a nós mesmos.

Carta a um amigo - por Stela Meneghel


O texto abaixo consiste em uma carta escrita pela Profa. Dra. Stela Meneghel, a partir de um pedido do Professor Dr. Roger Ceccon para publicação em um website do curso de Saúde Coletiva, da Universidade Federal de Santa Catarina, campus Araranguá, onde ele leciona. Replicamos o texto aqui no blog e recomendamos a leitura desse belo material. 




 Carta a um amigo


Querido amigo,

estou escrevendo esta carta respondendo ao pedido que você me fez para escrever um texto autoral e, tarefa difícil, pediu que eu escrevesse com a “alma”. Em primeiro quero agradecer o convite, e fiquei pensando o que poderia dizer de novo neste momento que parecemos ter esgotado nossas provisões de energias e de esperança, mergulhando em uma letargia de puro esgotamento.

Pensei então, que poderia ser uma missiva, dessas que se produzia antigamente. Pensei que poderia trazer algumas reflexões que o isolamento tem instigado. Parafraseando o Ailton Krenak, queria trazer algumas ideias, não sei se para “adiar o fim do mundo”, porém, modestamente, sem ter a pretensão de ter encontrado qualquer solução.

Oito meses no isolamento. Em um Brasil que responde por 15% das mortes mundiais (com subnotificação). Isolamento com privilégios, esse meu. Afinal tenho um salário legal, um apartamento espaçoso, comida na geladeira, carro na garagem e livros na estante.

Escritores, políticos, jornalistas, blogueiros, youtubers têm analisado esses tempos, trazendo uma ampla diversidade de aspectos, perspectivas, cenários, posições políticas. Nunca falamos tanto, trazendo um manancial de dados, estatísticas, opiniões, previsões, estimativas, augúrios… E, talvez, nunca tenhamos estado tão solitários.

Para as mulheres, agudizaram-se os problemas. Muitas que contavam com creches, escolas ou babás estão tendo que se deparar com a dupla ou tripla jornada de trabalho. Que já estava aí, porque as pobres, periféricas e negras nunca deixaram de exercer a dupla ou tripla jornada. Apenas a classe média podia terceirizar o cuidado dos filhos, nada novo também porque as crianças brancas foram criadas pelas mulheres negras desde o Brasil Colônia. Assim, as mulheres pobres, periféricas e negras seguem se expondo e a mortalidade pela covid atinge maiores taxas nas periferias.  O racismo segue invicto.

Dispararam as agressões domésticas em um cenário de conservadorismo e retirada de direitos e aumentaram os feminicídios íntimos. O patriarcado segue invicto.

Aumentou a concentração de renda. Os ricos nunca ganharam tanto dinheiro. O capitalismo segue invicto.

Uma onda fascista percorre o planeta varrido por uma torrente de classismo, moralismo, misoginia, racismo, xenofobia, notícias falsas, ódio. Indivíduos, grupelhos, mafiosos, milicianos, matadores de aluguel, mercenários se orgulham por destilar uma fúria cáustica, perversa, narcísica, homicida, anti-humanista.  A cada dia, governos autoritários, que se jactam de terem sido eleitos pelo voto, destroem direitos, rifam o patrimônio público, entregam a soberania nacional aos interesses estrangeiros, compram apoio de oportunistas para se manterem,  perseguem militantes sociais, jornalistas, políticos progressistas, indígenas, quilombolas, o povo, enfim… Caminhamos para regimes cada vez mais autoritários, nos quais a vida nada vale. Caminhamos para o campo de que nos falava Agambem; “o campo, que agora se estabelece firmemente é o novo nómos biopolítico do planeta”. .Alguém havia imaginado isso, dez, cinco, dois anos atrás?

Releio o livro de Albert Camus, a peste. Absolutamente atual. Uma cidade imaginária no norte da África natal de Camus.  Feia, seca, árida, onde os homens pensam apenas em fazer negócios, em ganhar dinheiro. E aparece o primeiro sinal: um rato morto no corredor. Os ratos seguem aparecendo moribundos expelindo sangue, são centenas à luz do dia. Estão em todos os lugares. Epizootia declarada. Os humanos começam a apresentar sintomas, febre alta, gânglios intumescidos que se rompem em sangue, pus e mau odor. Os mais atingidos e primeiros a morrer são os pobres enquanto os ricos, como sempre, desfrutam de mecanismos e barreiras de proteção.

As pragas sempre dizimaram mais pessoas que as guerras e os pródromos de ambas sempre foram minimizados e desacreditados, diz um dos médicos –  Castel, para seu amigo, Rieux, o protagonista da história.  No diálogo entre os dois médicos, o mais velho afirma: É evidente que é a doença (ele não pronuncia o seu nome, como se fora uma interdição), afirma Castel, que havia estado na China onde teve contato com a praga. E segue: não é preciso esperar a confirmação laboratorial, a clínica está mostrando, os bubões aflorados drenando pus. É a peste.

Na cidade empestada de Camus, assim como no capitalismo atual, os negócios são prioritários e induzem as afirmações negacionistas das autoridades politicas e sanitárias. Mesmo frente à obviedade dos sinais é melhor calar, construir mentiras e até crer nelas.  A população também prefere negar, é mais confortável, menos atemorizante, “afinal de contas, todos vamos morrer, não é mesmo?” Quantas vezes fingimos não ver a realidade, dizemos que não é nada, não vai durar, é só uma besteira, vai passar. Não está sendo assim no aqui e agora da epidemia?

No sofrimento que se abate sobre nós e nas diferentes maneiras que usamos, nos deprimimos, fugimos ou enfrentamos os acontecimentos, me vem, mais do que nunca,  a imagem de Gèricault, o artista que imortalizou a  Balsa da Medusa. Pautado em um fato real, o naufrágio de um navio no século XVIII na costa da África, a morte de grande parte da tripulação e a errância de um grupo que se refugia em uma balsa, permanecendo no mar por um longo tempo, sedentos, alimentando-se de carne humana, ultrapassando o imaginável, o pintor reproduz todo um cabedal da tipologia humana: o homem que se abate, o que tomba exangue no limite das forças, o que clama aos deuses, o solipsista, o que perdeu a razão, o que maldiz a sina e, finalmente, aquele que divisa a terra ainda não vista, o arauto da esperança, que o pintor imortaliza na figura de um homem negro.

Então, enquanto aguardamos o fim do mundo (pelo menos aquele que conhecíamos) vou tomar a liberdade de recomendar alguns recursos que tenho usado para enfrentar a solidão, o isolamento, o mundo em chamas lá fora, o medo da morte.

O primeiro antidoto que recomendo é a leitura. Mas, não poderia recomendar  qualquer leitura. Peço cuidado com as fontes, com a rapidez e com a superficialidade. Abasteça o tear com boa literatura. Não tenha pressa. Alongue o tempo e o prazer. Busque autores densos, antigos ou atuais, clássicos ou emergentes, histórias ou relatos que instiguem, questionem, critiquem. Rememore o que está lendo, argumente com o autor, converse com ele. Que o contador de histórias se torne seu companheiro na solidão, no medo e no isolamento.

Que as narrativas instiguem pensamentos, que sensibilizem e agucem a imaginação. Que disponibilizem diagnósticos dos grandes temas humanos, relatos políticos, denúncias de iniquidades, de violações de direitos, de genocídios e da necropolítica que se tornou a ferramenta do dia, e que não permitam que se perca a capacidade de se indignar e de continuar lutando, mesmo quando as lágrimas molharem as páginas do livro e o futuro pareça ter se evaporado.

A segunda prescrição que faço é a do trabalho manual, rompendo com a velha dicotomia entre o intelectual e o físico, trazida e imposta pelas elites coloniais deste país. Mantenha a mente cultivada pelo pensamento crítico, mas gaste parte do seu tempo para trabalhar o corpo físico. Use um tatame para fazer apoios e flexões, faça caminhadas pelas ruas menos movimentadas em horários de pouco fluxo. Se tiver uma bike, pedale. Limpe a sujeira que você produz. Faxine a casa ou apartamento.  Cozinhe, lave os pratos, se possível jardine, lixe um velho armário, pinte uma peça de sua casa, conserte a roupa, limpe o banheiro.

Despenda sempre um tempo para o lúdico, para a alegria e o encontro com a vida. Escolha o que lhe dá prazer. Tome sol na sacada ou no terraço com o seu traje de banho favorito. Ouça as velhas músicas na vitrola e cante junto, se possível acompanhe o ritmo com um tambor (o meu é de religião), dance agarradinho(a) com você mesmo(a) e faça todos os floreios que uma valsa, tango ou xaxado exigem. Aprenda a tocar aquele instrumento que você desejou desde criança e nunca teve tempo. Recite em voz alta os versos de seus poetas favoritos, escreva outros se quiser. Sonetos, poesia concreta, hai-kais, não importa o gênero. E pinte, pinte o sete.  Pinte cartões, quadros, grafittis, pinte a cozinha com a tinta descascando. Pinte a cara, se maquie, use o perfume guardado para ocasiões especiais e deguste um chocolate com pimenta.

E para finalizar, pense na morte. A velha carta do tarô, o número treze. A ceifeira, que joga xadrez com o cavaleiro cruzado do filme Sétimo selo e que o leva dançando no cortejo final. A imperenidade de tudo. A fugacidade do mundo. A ilusão. Escondemos e banalizamos a morte e o quanto esta banalização também se torna um disfarce negacionista. Mas embora saibamos que não adianta temer, que o medo de nada vale, apenas nos paralisa, continuamos amedrontados. E como enfrentar o medo?  Como exorcizar este sentimento que nos aguilhoa e sobre o qual temos pouco ou nenhum controle?

Não tenho respostas, meu amigo. Sei apenas que precisamos nos dar as mãos e nos escutarmos. E que sigamos fazendo o nosso melhor, desejando  “que el dolor no me sea indiferente, que la reseca muerte no me encuentre vacía(o) y sola(o) sin haber hecho lo suficiente”, como a voz de Mercedes Sosa entoando a música do Gieco. Sei apenas que o nosso antídoto ao ódio, ao medo, à impotência sempre foi o afeto, a esperança e o amor, como pregado e preconizado pelos profetas, pelos videntes, pelos loucos e pelos revolucionários de todos os tempos, de Cristo ao Che, de Sidarta a Lumumba, de Sócrates a Malcom X, do escravo Espártaco ao escravo Toussaint L’Ouverture. Escravos que perderam o medo, ultrapassaram a morte, romperam as cadeias e se tornaram livres.

Abraço fraterno, stela

A Balsa da Medusa - Gèricault

Referências

Agambem, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

Bergman, Ingmar. O sétimo selo. [filme]. 1954.

Camus Albert. La peste. Paris: Gallimard, 1947.

Gieco, Léon. Solo le pido a Diós [música], 1982.

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Meneghel, Stela N. Chora América, os teus mortos. In: Meneghel SN, Gomes AL, Meneghetti B, Silva KS, Ribeiro RHF (orgs). Antimanual para enfrentar a Covid 19. Falando de medo, angústias e violências. Porto Alegre: Editora Rede Unida, 2020. (no prelo).

Fonte: https://escoladesaudecoletiva.com.br/querido-amigo/